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Tudo aquilo que sou...
Fotografia: Wilson Icasatti Ramires
Os dias andam assim... devagar. Atormentam as horas que se enroscam na pele e não deixam respirar.
E eu a sentir-me metade de alguma coisa enquanto me sinto um tudo de nada...
Fotografia: ?
Debruças o corpo na janela do carro e agitas os braços no ar enquanto me dizes adeus com as duas mãos irrequietas.
Com as duas mãos.
Como os pequeninos.
Se calhar sabes que assim transmites melhor o que não dizes mas deixas que se liberte no brilho dos olhos e nesse acenar de mãos...
Adeus... A Deus.
Com as duas mãos... como quando caminhamos lado a lado e entrelaçamos as nossas.
Uma mão não chega, falta-lhe sempre o par.
Talvez se dissesses adeus com uma só mão, guardasses a saudade presa na outra. Ou talvez as duas mãos abertas sejam a melhor forma de deixares partir essa tristeza que mói baixinho.
Com as duas mãos... melhor assim.
Uma mão tua é pequena demais para transmitir sentimentos grandes.
Sinto-te a falta.
Gostas de mim. Tanto, que me dizes adeus com as duas mãos.
Ainda bem.
É doloroso não sermos correspondidos, não é?
Fotografia: A Brito
"Foram uns amores singulares, aqueles. No Junho, as cerdeiras punham por toda a veiga uma nota viva, fresca e sorridente. As praganas aloiravam, as cigarras zumbiam, as águas de regadio corriam docemente nas caleiras, e dos verdes maciços de folhas leves e ondulantes, emoldurados no céu, espreitavam a primavera, curiosos, milhares de olhos túmidos e vermelhos. Era domingo. E ele subira por desfastio à velha bical dos Louvados a matar saudades de menino.
- Não dás um ramo, ó Coiso? - perguntou do caminho a rapariga.
- Dou, dou! Anda cá buscá-lo. Pela voz, pareceu-lhe logo a Natália. Mas só depois de arredar a cabeça de uma pernada é que se confirmou.
- Não estás de caçoada? - Falo a sério!
Era bonita como só ela. Delgada, maneirinha, branca, e de olhos esverdeados, fazia um homem mudar de cor.
- Olha que aceito! - E eu que estimo... Tinha já no chapéu algumas cerejas colhidas, reluzentes, a dizer comei-me.
- Não teimes muito...
- Valha-me Deus!... A rapariga atravessou então o valado, entrou na leira e chegou-se, risonha,
- Segura lá na abada... Encandearam os olhos um no outro, ela de avental aberto, ele de rosto afogueado, deram sinal, e a dádiva desceu, generosa e doce.
Vista de cima, a Natália ainda cegava mais a gente. O queixo erguido dava-lhe um ar de criança grande; os seios, repuxados, pareciam outeiros de virgindade; e o resto do corpo, fino, limpo, tinha uma pureza de coisa inteira e guardada.
- Terão bicho?
- Têm agora bicho! Ia-te mesmo dar cerejas com bicho!
Sem querer,, a resposta saíra-lhe expressiva demais. O coração agitou-se um pouco, o instinto, acordado, estremeceu, e os olhos, culpados, fugiram-lhe do rosto da moça e fixaram-se sonhadoramente no céu.
- Bota cá mais meia dúzia. Já que comecei... À medida que se enfarruscava de sumo, a Natália ia-se tomando também num fruto que apetecia colher. Mas recusou-se a vê-la com pensamentos desejosos e atrevidos.
- Segura lá esta pinhoca... Era um lindo ramo que fora buscar à coroa quase inacessível da árvore. As cerejas, libertas da sombra protectora das folhas, tinham-se dado inteiramente ao sol, deixando-se amadurecer por igual, num abandono quente e ditoso.
- Que lindo! - É para que saibas... Concentraram a atenção um no outro, e de tal modo ficaram fascinados, que se ela não dá um grito de aviso, com a oferta vinha o doador também ao chão.
- Cautela!
- Não há perigo. No enlevo em que ficara, o desgraçado até se esqueceu do sítio onde estava.
- Queres mais? - Não, bem hajas... Pôs-se logo a descer, um pouco atarantado por lhe faltarem já as palavras que lhe havia de dizer cá na terra. Ela é que entretanto se escapulira. .- Adeus!...
O namoro, contudo, tinha começado. Sem nunca falarem daquela tarde, sabiam ambos que se amavam e que fora a velha cerdeira bical que lhes aproximara os corações. Pena elo ser o que era: uma natureza tímida, incapaz de um acto rasgado e levado ao fim.
Falavam ao cair da tarde, quando a fresca do anoitecer aligeirava o cansaço das cavas, sem que ninguém reparasse, pois a povoação aceitara já aquela união como um facto natural e acertado - e o rapaz ainda a meio do caminho, atarantado e reticente.
- Que diz vossemecê? - perguntava ele à mãe, à pobre Teodósia, que não via outra coisa na vida senão a felicidade do filho.
- A mim agrada-me... É boa rapariga, e limpa, é jeitosa... - Lá isso... Dizia, e ficava-se calado, indeciso entre o sonho e a realidade.
- Fala à gente! Era sempre a Natália a começar, como no dia das cerejas. Por mais que fizesse, nunca ele se atreveria a dar o primeiro passo. Só quando a rapariga quebrava a distância é que o coitado se abria num contentamento sem medida., tonto e novo como um cabrito. Mas nunca passava de coisas vagas e enternecidas. As palavras concretas magoavam-lhe a boca.
- Ainda não lhe falaste em nada? - Indagava a Teodósia, insárida.
- Não. Mas amanhã... - Ou quererás tu antes que eu lhe diga... ? - Melhor fora! Valha-a Deus! Isso até era uma vergonha!
Lá conhecer os pontos de honra de um homem, conhecia-os ele. A coragem é que não chegava à altura do entendimento.
Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a terra.
- O João Neca esperou-me ontem à entrada do povo... - começou a Natália, à saída da missa.
- Ah, sim? E depois? - perguntou ele, a sentir o sangue subir-lhe à cara.
- Pediu-me namoro... - deixou ela cair com melancolia.
Era justamente altura de lhe dizer tudo, que a não podia tirar do pensamento, que só quando a levasse ao altar teria paz, que não seria nada no mundo sem os seus olhos verdes ao lado. Mas ainda desta vez o ânimo lhe faltou.
- Bem, tu é que vês... Ele não é mau rapaz... Rasgava-lhe conscientemente o coração com semelhante aquiescência, porque tinha a certeza que desde a primeira hora o amava também. A coragem é que não era capaz doutra coisa.
- Eu queria lá um farçola daqueles! Estou muito bem assim...
Puras palavras de desespero. Tanto ela, que despeitada as dizia, como ele, que culpado as provocara, sabiam que eram o fruto de uma revolta impotente e destinada a morrer.
A pobre Teodósia é que lutava às claras. E dias depois já estava a picar o filho:
- Sabes o que me disseram hoje na fonte? - Que a Natália tem namoro com o João Neca... - respondeu, vencido.
- Nem mais. - Pois tem...
- Já sabias?! Então... e tu? Não a queres? Ou foi ela que te deixou ?
- Eu sei lá o que foi... Dali em diante parecia viver de alma viúva. E a alegria do rosto da rapariga cobriu-se também de um negro véu de desilusão. Passavam um pelo outro e comiam-se com os olhos. Mas nem ele lhe falava no seu amor, nem ela rasgava já a frágil teia de separação.
- Casam-se para a semana... - ia esclarecendo a Teodósia, como um remorso.
- Já sei. - O padre leu hoje os banhos... - Pois leu... Era uma resignação que quebrava a gente, e desarmava. E a velha não encontrava outro alivio senão chorar.
- Morria por ti! - disse-lhe numa manhã, que podia ser de felicidade para os três., e se transformara num pesadelo.
Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado, e só naquela casa a tristeza se aninhava sombria e desamparada a um canto.
- Também eu gostava dela... Era outra vez Junho, as searas aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarninha."
Miguel Torga, Novos Contos da Montanha
Como confissão... sempre que chega o mês de Junho, inevitavelmente me vem à lembrança esta história que me acompanha há tantos anos. E depois, chegam outras de mansinho à memória.
Histórias que podiam ter sido e não foram.
Não por falta de amor ou de algo maior. Mas por falta de coragem. Por falta de uma palavra, de uma atitude, por falta de qualquer coisa que fizesse durar e deixar que esse amor seguisse em frente. O esvoaçar de mil borboletas no estômago que nem sempre nos deixam ver mais alem.
Histórias que ficam sem futuro para contar por falta de alguma coisa. Por vezes é assim... falta sempre alguma coisa.
São os destinos que poderíamos ter e não temos. Que escolhemos em cada hora. Quando temos oportunidade, quando nos dão oportunidade sem saber sequer que a estamos a ter ou outras vezes, em que temos que lutar por uma oportunidade e fazer alguma coisa por esse amor.
Mil destinos que podíamos ter, neste instante. Que nos fazem passar a vida muitas vezes sem pensar mais nisso e noutras a perceber que ficou por viver apenas porque nada se fez por isso.
Amar, só, não basta.
Mas o amor já se sabe... é como as cerejas...
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