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A vida do avesso...

Confessado por Mulherde30, em 30.07.15

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Sempre o soubeste. Que um dia, seria o último dia. Mas nunca pensaste nisso de verdade.

Foste vivendo essa vidinha de perfeição e fazendo planos para tanto tempo depois de hoje.

Viveste sempre como se fosse um dia a mais. E afinal, era um dia a menos.

Hoje, alguém te disse que era o fim. O princípio do fim. Choraste e sentiste a fúria do universo contra ti. O universo tão infinito contra ti, vê tu. Um soco assim, a seco, no estômago. Os muros que construis-te ao teu redor, desmoronarem-se agora, assim.

Revoltaste-te e gritaste. Ficaste em silêncio e o coração a rebentar-te por dentro, por impotência. Por quereres acordar apenas. Re-fazer. Re-viver. Mas desta vez, bem. Ou pelo menos, melhor.

Tu que sempre pensavas que um dia. Um dia ias fazer, um dia ias ter. Lutaste sempre para isso, mas nunca fizeste e nem sequer tiveste aquilo que te enchia o peito. Aquilo que aquece o coração. Aquela felicidade que nos sai pelos olhos, sabes?

Sem te dares conta que o tempo, sorrateiro, passava por ti e te ia sulcando o rosto, o corpo e a alma. E tu, sempre distraída. Sempre na vida do agora não posso. E a vida sempre à tua espera, a ser branda contigo, a rondar-te à espera que visses que ela estava ali, a abraçar-te de mansinho. À espera que também a abraçasses, ou que pelo menos entrelaçasses as mãos.

Quando as crianças te pediam para brincar e tu a dizeres agora não posso. Há o jantar para fazer, a roupa para lavar, estender ou apanhar. A casa para limpar.

Agora não posso quando os amigos te chamavam para sair e tu cansada do trabalho que te esgotava o tempo e sugava qualquer vontade.

E hoje, vê tu, que não há mais tempo, percebes que tudo foi uma luta vã. Todas as horas extras de cansaço acumulado, só fazem com que chores mais por teres perdido tanto tempo, por tantas coisas terem sido tempo perdido…

Adiaste sempre a vida com o teu agora não posso. Agora não posso ser filha, agora não posso ser mãe nem amante nem amiga. Nunca o foste por falta de tempo. E agora tens todo o tempo do mundo. Tanto tempo para se ficar à espera. Cada segundo como se fossem anos. O que vais fazer com tanto tempo? A eternidade. E a eternidade, dizem que é muito tempo…

Como será lá no trabalho?, pensas tu? Lá no trabalho serás substituída. Possivelmente por aquela rapariga sonsa que nunca te enganou e sempre quis o teu lugar. Talvez até no derradeiro dia, alguém dê um saltinho para te levar um ramo de flores bonito, com cartão de pesar. Por enquanto dizem que têm pena de ti. E depois, mas só depois, eras tão boa rapariga.

Os teus filhos? Vão crescer sem ti e talvez até se consigam lembrar que a mãe nunca tinha tempo, nunca podia. É possível que deixem as atividades extras curriculares que lhes ocupam quase todos os dias de uma semana. Aquelas onde se aplicavam, por tua exigência, para serem sempre os melhores. E nunca os foste ver a serem os melhores

O teu marido? Vai continuar com a sua vida. Da melhor forma que souber. Talvez venda a vivenda e os carros. E vá viver no campo como sempre sonharam, quando ainda namoravam, em construir família.

Os teus pais? Aqueles a quem nunca telefonavas nem visitavas por falta de tempo? Vão continuar a encher-te com mimos até ao teu último suspiro. E depois disso, chorar-te-ão até ao último fôlego.

Os teus amigos? Que amigos? Aqueles que deixaste na berma da estrada da tua vida agitada? Aqueles a quem deixaste até de telefonar e atender telefonemas? É nesses amigos que pensas? Nesses que foram desistindo de ti, ou nos outros que foste magoando?

A vida a seguir em frente, a acontecer. A vida de todos a continuar, menos a tua…

 

Não te dá jeito nenhum, ser hoje. Há roupa no estendal e ainda não terminaste o relatório para a reunião de segunda-feira.

As férias de agosto já estavam planeadas, desta vez às Maldivas. Era giro dizer depois aos colegas lá na empresa que tinham tido uma lua-de-mel enquanto mostravam fotografias de águas límpidas de azul profundo. Mas sem os miúdos para terem tempo a dois, claro.

E terás que adiar a compra do carro novo.

Não dá jeito nenhum…

 

Quando ficas sozinha, as ideias vão ficando mais assentes dentro de ti. Vais-te conformando por dentro para ser mais fácil. Vais aceitando enquanto um novelo na garganta te dá vómitos por quereres apenas não chorar.

Ficas a lembrar-te do que eras, de quem eras. Quando foi que tudo passou a ser mais importante que a tua vida?

Quando foi que aquilo que mais gostavas foi ficando numa gaveta para te mostrares assim, tão profissional e heroína perante a sociedade?

Quando foi que trocaste as escapadinhas de mochila às costas por hotéis de luxo?

Quando foi que te começou a ser fácil deixares os teus filhos com os avós?

Quando foi que começaste a ter uma agenda?

Quando foi?, lembras-te?, quando te deixaste corromper?!

Tudo te passa pela mente. Logo agora, mas só agora, que sabes que é o fim, que sentes a nascer em ti essa vontade de regresso às origens. Voltares a ser tu. Tu amiga, tu mãe, tu esposa e amante, tu filha, tu tudo. Só tu. Sem a morada do bairro chique, sem os sapatos nem malas nem roupas de marca, sem o carro topo de gama, sem vivenda nem piscina, sem maquilhagem. Finalmente tu em tudo.

Logo agora que queres ser tu, já não podes ser.

 

Pedes silenciosamente. Imploras até a um deus em quem nunca acreditaste. Só mais um dia. Só um. Para ser feliz um bocadinho. Para fazer e dizer. Para amar. Para estar apenas lá.

Para saborear um pouco de tudo o que tinhas e que estás a perder. Para viver. Já disse para amar?

Entras em casa com o peso do mundo nos teus ombros, derrotada. Mas invade-te a sensação de entrares no lar que sempre quiseste ter. E sempre o tiveste. Mas não o vias, não o sentias, nunca o viveste.

- Como correu?

- Correu bem. Hoje os miúdos não vão ao ballet nem ao futebol. Vamos pedir qualquer coisa para jantar. Outro dia trato da roupa e limpo a casa. Hoje vou ficar aqui a brincar com eles, a lambuzá-los de beijos. Vamos antecipar as férias. Procura uma pousada para nós todos, lá para os lados do Gerês. E já agora,amo-te.

 

“Por favor, só mais um dia”, dizes baixinho enquanto estás a ser sufocada com almofadas e corpos pequenos, entre risos e gritinhos. Duas crianças que de tão felizes, já nem se lembram que ainda ontem não tinhas tempo. E não tinhas mesmo… Hoje tens menos. Mas tens garra de viver os segundos que faltam. Porque já pouco importa e nem sequer queres saber do resto do mundo.

Só mais um dia, para viver um bocadinho, só um bocadinho.

 

No escuro do quarto, deixas as lágrimas correr, silenciosas. Tens um medo. Se fechares os olhos, será para sempre?

Tens medo de adormecer sem querer. Parece-te agora que toda a tua vida, estiveste adormecida.

Será para sempre?

- Por favor, só mais um dia….

 

 

publicado às 17:58



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