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Tudo aquilo que sou...
Quando cheguei ao hospital, estava ele, tão pequenino, com a testa encostada ao vidro da janela. Viu-me, correu para mim, deu-me um daqueles abraços de criança apertadinhos que só me fizeram chorar mais.
Voltou-se de novo para a janela, com os olhos tristes. Nem sei se via ou se olhava apenas para além de uma sala de espera cheia de crianças a chorar, de rostos de pais assustados...
Encostou a boca pequena e embaciou o vidro desenhando com a mãozinha uma menina.
- É a mana?
- É... a maninha está doente, sabias tia?
- Sei. E tu estás triste.
- Pois estou, tu tambem. Estás a chorar.
- Consegues contar à tia o que se passou?
Dizem que os gémeos têm uma ligação mais forte que outros irmãos. Nã sei se é verdade. Sei, isso sim, que via ali o meu sobrinho, tão frágil, de olhar tão perdido, a falar-me da irmã. A explicar-me, enquanto desenha no vidro embaciado da janela, como tudo aconteceu. A falar-me da irmã que está algures num quarto deste hospital pediátrico, transportada de um outro, vítima de atropelamento.
- Nós passámos na passadeira, tia... mas estava um carro estacionado e não víamos bem se vinha algum carro na estrada. Vínhamos da escola, já mesmo a chegar a casa da avó. Depois eu vi o casaco da maninha a ir pelo ar e pensei:" vou apanhar o casaco da minha maninha". E quando cheguei lá, a cara da maninha estava no casaco, era a maninha que ia no ar, não era o casco da maninha. Ela ia com aquele casaco cor de rosa que ela gosta e que fica chateada quando lho puxo, sabes? E depois a maninha estava a deitar sangue e eu queria pegar nela ao colo, mas não conseguia. Então gritei socorro... ajudem a minha maninha. E veio um senhor que me disse para não pegar nela e depois chegou muita gente a gritar que ela estava morta... e eu fui chamar a avó e tu não estavas em casa. Onde estavas tu, tia?
- Estava a trabalhar, meu querido.
Ele voltou-se para a janela. Eu de coração a rebentar-me o peito por saber dela lá dentro e dele ali, a assistir a tudo isto. Com sete aninhos? Não é suposto ser assim...
- Não fiques triste, vais ver que amanhã a mana já está em casa.
- Como sabes?
- Não sei, meu azeitoninha preta, não sei. Só acredito...
- Em Deus?
- Sim...
- Mas tia, e se Deus gostar tanto da minha maninha como eu e quiser levá-la para brincar com ele como fez com o avô?
- Ele não fará isso, meu amor...
- Não?
- Não...
- Como sabes?
- Tambem não sei...
Ficam as respostas por se dar... fica o peito e os olhos a rebentarem em lágrimas, o peso do mundo inteiro nos ombros, a incerteza, o medo, toda a dor, dividida e multiplicada por todos...porque não há respostas a dar. Ficam as horas de espera que nunca mais terminam. Vem a raiva por não se acreditar que a vida possa ser só assim, cruel.
No fim, de que vale tudo? Nada...
Fica a fé... e os olhos tristes de uma criança que vê o mundo da forma mais pura, mais simples, mais frágil. Só porque ama...
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