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Tudo aquilo que sou...
Levanto-me na correria habitual.
No duche, enquanto a água me vai tirando a espuma do corpo, estremeço. Sinto um baque que me faz apressar. Que me faz vestir na pressa e sair de casa sem perfume, sem brincos, sem sorriso.
Conduzo pela cidade com ânsia de chegar e com o coração a mil...
Vou ao Centro de Saúde porque preciso falar com o médico de familia. A sra no guichet olha-me. Pergunto se o médico me pode atender.
- É urgente?
- É...
Pergunta-me o que sinto, explico-lhe e diz-me:
- Para isso só tem vaga em Setembro...
- Não, tem que ser hoje.
- Não...isso não é urgência. E só há vaga....
Não a deixo a cabar, resmungo, rodo nos calcanhares e saio disparada. Sei que não é ela que comanda este sistema, mas revolto-me e sou mal educada. Mas sinto-me muito nervosa.
E fazem propagandas para prevenir....vale de muito, vale!
Vou às urgências do hospital.
As perguntas são as mesmas, mais uma vez explico e a resposta:
- Isso tem que ser com o médico de familia...
Somos todos iguais, dizem....pois sim. Democracia....
Pergunto à sra do guichet por um Dr. conhecido. Que esteve ao meu lado em momentos em que muito precisei, por quem sinto carinho, respeito e admiração.
Diz-me que não está de serviço....e o coração apertado.
Vou embora. Caminho até ao carro com os olhos como fontes.
As horas não passam. O medo começa a despontar.
Não consigo esperar tanto tempo...
À tarde ligo ao médico. Uma vez e outra. Não atende, desisto.
As horas são infernais.
23h... toca o telemovel
- Então Raquel? Ligou-me?
- Sim...preciso falar consigo
- Estou de serviço toda a noite nas urgencias, passe por cá.
Eu vou com o peito tão apertado que custa respirar.
Quando chego, sento-me à espera.
Vejo ambulancias que chegam com corpos desfeitos, gemidos e viro a cara...custa.
Espero minutos que me parecem milénios. E ele chega. Estende-me as mãos querendo apenas as minhas e nesse momento, por um quase alivio que sinto, começo a chorar.
-Senta-te. Chora um bocadinho, depois dizes-me o porquê dessas lágrimas. Eu deixo-te chorar porque mesmo a chorar és linda.- diz-me ele em tom de brinacdeira para tornar o ambiente mais ameno.
- Sou uma desnaturada...só lhe ligo no Natal e quando preciso de ajuda.
- Fazes bem, sou médico. É para isso que cá estou. Diz-me que se passa.
Entre soluços digo-lhe o que me atormenta desde manhã.
- Despe-te e deita-te. Não é a primeira vez que acontece, não fiques logo a pensar no pior. Da outra vez tudo se resolveu, tudo passou e desta vez será igual.
Enquanto me deito desejo cá dentro que ele me diga que é impressão, que não detecta nada, mas a voz diz outra coisa:
- Ora aqui está... mas é um nódulo pequeno.É na mesma mama, não é?
- É...
E por um segundo o peito fica suspenso...
- Desta vez não vou poder ajudar-te com tanta urgencia. O colega que faz as mamografias está de férias. Com o que está a substituir não tenho muita confiança e não fica bem estar a pedir-lhe para te ver e dar a opinião. Eu não te digo nada porque não é a minha área...mas ele quando chegar, na proxima semana, ligo-te logo e tu vens... mas não fiques a pensar nisso. Queres uns comprimidos para dormires?
- Não, Dr...obrigada. Vou dormir vencida pelo cansaço.
Ele vê a desolação...agradeço-lhe e saio.
A cabeça com pensamentos a uma velocidade alucinante.
É claro que não consigo dormir...
Tudo passa na minha mente. Tudo outra vez... os dias que não terminam e as noites ainda mais longas que trazem receios maiores, aqueles em que não quero pensar mas penso.
Uma angustia, uma impotencia que não divido com ninguem, que vou carregar sozinha... falar para quê? Para me dizerem: não te preocupes, de certeza que não há-de ser nada...
Sim, será nada.... e há a outra hipótese de ser tudo.
Prefiro guardar a tortura dos dias longos sozinha.
Quando me deito e apago as luzes, fixo os olhos numa fotografia que não vejo, mas sei que está lá. Sou eu... há alguns anos. Um momento que ficou regisado. Um momento de liberdade que me recordo, com precisão, de sentir.
Era isto que preciso outra vez. Quero isto outra vez. Ouvir a rádio de sempre, com musicas de sempre...não quero que a vida mude.
E choro. Porque sempre odiei esperar, mesmo levando a vida a adiar a Vida.
Se a dor tiver que chegar, que chegue depressa. Tenho ainda uma vida cheia de vidas para viver.
Esperar é que corrói, corrompe, mata, fere, destrói.
O não saber, a duvida, origina o vazio. Um vazio que só precisava de uma palavra que não chega, que não vem, que ninguem tem para me dar. Uma palavra que parece ser o segredo de uma vida inteira.
Esperar cheia de duvidas...
Sei que estes dias vão parecer eternidades. Mas o que angustia não é o terror de dias que podem vir. É esperar por eles.
E se cair ao saltar, quero que seja do topo do mundo, para ter a certeza que morro. Não quero cair de lugares pequenos.
Só não quero ter medo, mas tenho.
E a minha luta nestas horas sem fim é para não perder a coragem. Sei que quando ela me falhar já nada restará de mim.
Sinto-me tão frágil...
Mas não quero ficar com esta tristeza... o pensar nas coisas que não foram como se não houvesse hipótese de virem a ser. Como se todas as histórias lindas que não vivi e das quais sinto saudade, ficassem para sempre numa gaveta cheia de pó.
Como se hoje pudesse ser o principio de nunca mais, o inicio do fim...
Soluço baixinho, abraço o meu corpo, embalo-me. Acho que só queria dormir. Deixar de sentir este latejar, esta agonia que me invade por medo.
Quero acreditar que amanhã a vida será melhor...
Falo com um Deus em que acredito. Ainda...
Falo-lhe no silêncio do coração.
Tenho tanto para lhe dizer! Mas limito-me a poucas palavras que são grandes porque contêm toda a minha dor, a minha revolta, a angustia e um quase desespero:
Por favor... só mais um dia.
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